Wednesday, February 22, 2006

BAS-RELIEF

1

Tua pele recende a orvalho
pluma destacada de teu ombro
mão fatigada
vôo alçado em despedida.
Teu corpo exala o frescor
não pressentido
aura circunscrevendo o oceano
imerso em abismo
ressurgido, vivo, outro.
Tua voz habita cavernas
antigas, ecos inversos
de uma planura exígua
fóssil atento, marmóreo fosso
nuvem espargida em cinza.
Teu ventre abriga o labirinto de Minos
Ariadne pura a desfiar sozinha
a perpetuidade mínima
de um lance de flechas.
Arco irredutível
tua mão esculpida em âmbar
lágrima cristalizada em dia
translúcido ser impermanente
verdor primevo
alvura extensa de teu próprio olho.
Teu olhar atinge a luz e a refrata
cristalino brilho
lacerada espera.

19/04/2005 – 10h30

2

Tu és um e um outro.
És perfeito e amado
adorável em seu perfil
de sombra, em qualquer
dia de teu desfolhar
lento, contido num
gesto eterno.

19/04/2005 – 22h47

3

O amado diz:
tua ausência é uma presença desencarnada.

Um oco onde antes havia algo
uma memória deixada ao relento

passo não dado
um silêncio

tempo abandonado
modo de adormecer à sombra

um segredo
a vida toda à espera

insight
lampejos a esmo

fundo falso de gaveta
onde se escondem inutilidades.

19/04/2005 – 22h40

4

Não me escolherás.
Na tua estreiteza tola
ouvirás outro canto
verás outro amanhecer
e tudo estará consumado.
Tua palavra será a minha
e eu esperarei outro
instante de penumbra
para meu nascimento.
Tuas coisas serão belas
depois de iniciadas
e tudo será maior que
teu coração de santo.
Serei efêmera
e a suavidade das esperas
superará o destino.
Estarei à porta de uma idade
que não retorna
e quando o tempo voltar
já teremos partido.
Nada nos deterá
nem mesmo o que pensamos.

26/04/2005 – 18h30

5

Precisarei de murmúrios
esta estância pressentida
e breve
olvidos de tua passagem.
Tudo nos abandona
ao abandonarmos
o que somos.
Seremos sempre terríveis
à socapa
à dúvida de outro
hemisfério.
Sofisma.
Transitoriedade do nada.

26/04/2005 – 18h40

6

Seguirão, breves,
as vagas e seus ornamentos,
a vida ao largo,
o lastro de horas,
fontes,
nichos arredios
– folhagens de tua mão.

Seremos eternos,
por onde bastarem
ciclos e poesia,
celebração do caos,
versos colhidos,
espuma, oratório,
por sermos cálidos,
efemeridade e termo.

22/05/2005 – 12h40

7

Me acostumo a tua ausência
como à dor.
Um mar de conchas
se instala onde habito
sem sargaços
sem paisagem marinha
que o vislumbre.
Me acomodo à falta
como um oco.
Largas sendas
amplos desertos
um nada uníssono e bravio
sem oásis
sem vento
que o devasse.
Me moldo ao silêncio
como uma nave.
Janelas, pórticos, enseadas,
narizes aduncos,
rostos marcados de passado
sem dia
sem noite
que os aliviem.
Se florestas houve
se o mar não há
e o visgo das sementes
se interrompe,
nêsperas, tâmaras, olivas,
orquídeas falhas deitam-se
entre teus lábios
e despertam.

20/06/2005 – 12h28

8

Teu odor vivo
lembram oásis
nascidos subitamente
de longos e revoltos desertos.
Tua voz é um riacho
murmurando nascedouros ermos
obscuros ventres
vertendo eternas manhãs.

Serão tuas falas
o musgo da pedra
a diuturna febre de estar desperto
lentas mãos
pequenos desmaios
póstumas de ti mesmo
harpa solitária e triste
reflexo na água
turva língua
a verter a lágrima no sorriso
inverso.

Restam vozes, rasgos
restam sonhos, nesgas.

Manhã de fogo
e lástima
verdor de ócios
e bruma
pele manchada
e estreita
febre e relento
veio e refúgio.

Verso vertical sobre tua cabeça
(abre lagos entre montanhas à distância)
nada será teu depois de hoje.
Nada se espera de mim
ou de ti, por sermos
a mesma vaga
o mesmo lastro ao mar.

És todo belo
terno sangue
pele amanhecida
nódoa
mantra
vôo de teu lábio
arrefecido.

Paraty, 9/07/2005 –11/07/2005

9

Ao me aproximar de teus pesares
levo meu olhar à tua boca
e o sopro traz o tempo à tua altura
o dorso de tua mão
o gesto de teu lábio.

Me vês porque me pressentes sem dizer nada.
Teu mistério é um oco ao avesso em que estás
por te ausentares.

Mordes o fruto que colheste.
O mesmo que me dás.
E a árvore perdeu seus pomos e suas folhas.

Vives no limite de auroras.
Sempre o indizível e invisível momento
quando faltas ao instante em que me visitas.

20/07/2005 – 3h42

10
OCEANO IMEMORIAL
Para Pedro Almeida e Marcos Marciolino

Verte, oceano imenso,
tua profundidade inteira,
seixo
alga
beijo.

Verte, tranqüila ramagem,
teu ardor de corais,
fronteiras
ilhas
cais.

Verte, o que te sobra hoje,
transborda o vinho, a língua,
aurora.

O que for destino,
vive e ora.
O que for trabalho,
adorna.


28/07/2005 – 23h24

11
CRÔNICA BELA
o que passou, o que ainda vai passar
o que se funda agora
e na hora da nossa vida-morte:
o resto só será palavra-além
Geraldinho Carneiro

Só sonha ser palavra-além
o que aquém não fica

Ficar é outro verbo que ramifica
torce-se a fímbria, vence-se o cansaço

Nada mais sagaz que as sagas
urdidura plana de planaltos

Enquanto o que verte não for salto
salta além de toda embocadura

A palavra inaugura o inaudito
o que se temeu dizer e não se disse

Mais vale este verdor que não se arvora
do que riachos plenos de outra aurora

Verdes outras histórias vão contando
vastos esses campos se enamoram

Afeita a língua à sua lábia imperfeita
ferem-se os ouvidos castos de senhora

O que de mim já se foi, tornou-se lastro.


8/08/2005 – 23h29

12
TURBA
Aos meus

Fria, a tarde se esconde
nesga de luz sobre a mesa
flor no copo, esquecida
última página aberta.

Éramos ainda densos
as fomes saciadas
mortes sôfregas e aduncas
vértices oblíquos ensimesmados.

Havia uma falta imensa
a mesma órbita cava
a mesma hora sofrida
o mesmo olhar extinto.

A carne, essa ausente
folha de nácar, perfeita
luz impressa no âmbar
fêmur intacto que passa.

Verte essa somba e vertigem
ouro escavado no solo
teus risos passados intactos
tua voz ampla e vaga.

Nada que não me remeta ao remoto
nada que não me diga do ontem
nada que não tenha sido ao menos
uma vez o princípio, o destemido
olhar de medusa.

Foge o tempo à sua memória.
Foge da tarde outro alento.

Ao relento passam somente
as horas.

11/09/2005 – 1h31

13
MANIFESTO

Eis o manifesto:
tua água é imensa
e a vaga de ti mesmo
te espera.
Quem és além de ti?
O outro que não vês
ou o que vêem sem teu vestígio?
Ergue a mão e atira
o lance de dados a descoberto
Mallarmé seduzido e esguio
vislumbre de tua casa e nódoa.
Eras um e serás sempre.
Em tua dicotomia, só um basta.
Nunca seduzirás a aurora.
Ela é mais antiga que o dia.
Sê feliz agora.
Amanhã não serias.

9/11/2005 – 21h09

14
UMBRO

O que meio se move à sua similitude
interior de casco navegado

Umbro, fungível Úmbria
catarse

Logo visto, logo ermo
logo a sê-lo.

Assim ficam adagas e hemisférios
o nada atemporal de tua casa

A sede
a fome,
o olhar antigo

Frágil temporalidade do efêmero
casca abandonada.


***


Labirinto de Minos
folha descendo o rio

Nascedouros irmanados
em lagos imersos

Subterrâneas distâncias
percorridas a nado.

Gentil veste de Ariadne
destecida lã de teu manto

Nódulo de árvore bipartida
feixe de alfazema esparramado.

Ergue, cálice temperado de Perseu
tíbia filigrana de teu lastro

Feres a pele de teu asco
sacralidade ao reverso do orgasmo.

Embebes o que é último e escasso
teu olhar a cegar a ferida.


19/11/2005 – 21/11/2005

15
EM TUA HORA

Em tua hora
só isto basta.
Tua veste de silêncio
e os dias a circular
teu ventre.
Todas as horas são pálidas
à medida que me distancio
e outra face surge
a mirar infinitamente.
Lembra, a vida se constrói
mínima, e divisa é tua sombra,
existência esquiva
entre esgares estreitos.
Ora, a vida te pede calma.
Não és mais só
e somente tu sabes.
Apascenta o que de ti
inventas,
outro cerne, carne
que se desdobra.
Nada resta de tua
dúvida.
Reinicia.
Terás sempre de servir.
Então, parte.

22/11/2005 – 21h40

16
BASTAR AOS DIAS

Cumpre-te
bastar aos dias,
horas tecidas de acasos,
lástimas, sofreguidões
esguias
últimos laços, verdores,
epifanias.
Cumpre-te viver a esmo,
conduzir-te
sobre os mares,
este o labor de tua
vasta cepa.
Nada chega a ser teu:
tudo passa.
Antes, o dilúvio.
Hoje, os dias.

3/12/2005 – 00h20

17
BREVE

Serei breve hoje e em outros dias
primeiro amando o que tenho,
depois o não tido.

Serei breve em todas as horas
em que persigo o olhar
sobre coisas não havidas
e principalmente serei breve
nos momentos reinventados
em que toda púrpura é extinta.

Serei breve para tudo que desconheço
por amar assim o que me apavora,
o medo, o mar, a sina,
o nada arrefecido e claro.

Serei breve por toda a vida
a passar despossuída,
deixando um rastro
esquecido de memória.

18/12/2005 – 19h40


18

ÉS PERMANENTE EM TEU GESTO,
teu lavrar de ouro,
a justa medida de tua fala.

Homem de símbolos,
tua palavra não basta.
Ergue-se em teus atos
o alabastro de todas as torres
imaginadas.

Cimo de minha ventura,
edificas-te além de toda imaginação.

Fiel a ti mesmo e a mim.

15/04/2007 - 12h41


19

A VIDA SE ESTREITA,
prenhe,
tecendo obra e vida
sobre a carne.
Silencias a tua palavra,

Sempre foram tuas as palavras,
a certeza da mão suspensa
em meio gesto.
Sempre foi teu o olhar, antes.

Em ti, a palavra se renova.

À parte de mim existiram os dias,
amplos quartos onde as tardes não findavam.

A casa é oca como casca de noz partida
que cai da mão depois de saciar-nos a noz.

Pequeno repasto,
diminuto cérebro na palma da mão,
encerrando seu ser
no vazio.

30/04/2007 - 28/06/2007